Bispo do Rosário

Bispo do Rosário

A apresentação

Ocorreu no dia 22 de dezembro de 1938, à meia noite. Sete anjos em nuvens especiais, no formato de esteiras, foram buscá-lo na rua São Clemente, 301, Botafogo. Empunhando lança, em uma nuvem de espíritos malignos, foi ele assinalado com uma cruz de luz azul nas costas, para apresentar-se na Candelária, onde seria reconhecido como Jesus Cristo. Este evento está registrado em um dos estandartes de sua obra, como marca do eixo lógico condutor da história inscrita em sua “Nova” Escritura, feita de linha fundeada, ancorada em lençol. E as palavras entrançadas um dia se farão verdade.

Apresentando-se, foi logo reconhecido como sujeito “fora do lugar”, imediatamente encaminhado para o manicômio da Praia Vermelha, no dia 24 de dezembro de 1938, nomeado pelos “homens de capa branca” como esquizofrênico-paranóico. Um mês depois levaram-o para a Colônia Juliano Moreira, onde viveu o mais largo tempo de sua vida com algumas saídas para trabalhar na casa da família Leone, de onde partiu no dia do encontro com os anjos para revelar-se o “deus recusado” por aqueles que não sabem ver.

Em 1980, “olhos de saber ver” seguiram em direção à arruinada Colônia Juliano Moreira, a fim de denunciar as condições do hospício e polarizar o momento de euforia nacional dos tempos de abertura política. O jornalista Samuel Wainer Filho, o Samuca, ao lado de seu cinegrafista, capturou pela primeira vez a imagem de Bispo e sua obra, exibida, em cadeia nacional, no dia 18 de maio de 1980, pelo Fantástico, programa de maior audiência, da maior emissora de televisão brasileira, Rede Globo de Televisão.

Bispo talvez não tenha percebido que, 38 anos após o evento da aparição dos anjos, naquela noite em Botafogo, outras nuvens estariam, então, trazendo-lhe novos emissários, prontos a levarem no a uma segunda “apresentação”, menos mítica, do seu universo para o mundano.

As denúncias do jornalista Samuel Wainer Filho repercutiram como um escândalo.

A Colônia Juliano Moreira foi submetida a uma devassa cujo resultado revolucionou o hospício de Jacarepaguá, conferindo liberdade aos doentes e melhorias nas condições de infra-estrutura do manicômio. Neste mesmo ano de 1980, o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, como funcionário do Ministério da Saúde, atravessou a rotina da Colônia Juliano Moreira, para documentá-la por meio de fotos e filmes. Avisado sobre a existência de Arthur Bispo do Rosário, após algumas tentativas frustradas, conseguiu entrevistá-lo, criando o filme O prisioneiro da passagem – Arthur Bispo do Rosário, em 16 mm, editado em 1982.



Denizart exibiu o filme protagonizado por Arthur Bispo em congressos, debates, encontros; e em 1982, o exibiu pela rede BBC de Londres. Daí para frente estava dada a partida; Bispo foi apresentado ao mundo antes de apresentar-se a Deus e os olhos do mundo voltaram-se em sua direção.

Pelos olhos do mundo dos vivos

Partiu de Frederico Morais, crítico de artes plásticas, a motivação de organizar uma biografia capaz de erigir o passado de Arthur Bispo do Rosário. O crítico foi despertado para a obra de Bispo, inicialmente, pelo programa de TV Fantástico, em 1980, e depois pelo psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, produtor do já citado documentário O prisioneiro da passagem.

Em 1982, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) organizou a exposição À margem da vida, com trabalhos de presidiários, idosos e doentes mentais. Cada um dos segmentos da Mostra foi organizado por um monitor. Maria Amélia Mattei, artista plástica e diretora do que mais tarde viria a ser o Museu Nise da Silveira, foi a responsável pela organização das obras dos internos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Maria Amélia contou com o apoio de Hugo Denizart na hora do diálogo com Bispo para tentar a cessão de alguns de seus trabalhos à exposição. Bispo resistiu para liberar seus objetos, entretanto, às vésperas da Mostra deu o seu consentimento.

A coletiva demonstrava uma tendência da época em discutir o conceito de Arte Bruta, criado por Jean Dubuffet, na Europa, em 1945. A mostra do acervo de Bispo do Rosario resultou no sucesso da exposição. Daí em diante iniciaram-se os debates entre grupos da elite estética, sobre a atribuição de valor à obra de um esquizofrênico como Arte.

Frederico Morais, então, coordenador de artes plásticas do MAM, comovido pelo trabalho de Arthur Bispo, quis conhecê-lo em sua cela, na Colônia Juliano Moreira. Hugo Denizart promoveu o encontro cujo desdobramento transformou o homem de passado apagado em artista legitimado, com a obra tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional.

Arthur Bispo do Rosário, por sua vez, nunca relacionou seu trabalho com a obra de arte. Trabalhava duro para relatar as coisas mundo e, assim, inventou uma técnica personalíssima. Bispo possuía o essencial, de que poucos artistas dispõem, ele tinha o que dizer, e a função mítica de o fazer, esta, foi a motivação de todo o seu esforço de invenção. Criou um duplo do mundo para apresentar a Deus.

Conforme o relato, daquela que mais tarde foi a biógrafa oficial de Bispo, a jornalista Luciana Hidalgo, quando Bispo deixou alguns de seus objetos saírem 33 dos quartos do pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira – para a exposição À margem da vida, em 1982, no MAM – “conversou com as peças, pediu que tomassem cuidado para não se deturparem mundo afora”. E quando foi convidado a visitar o MAM para ver seu trabalho exposto, recusou dizendo: “Meus olhos não estão preparados para ver aquilo”.

Em 1989 Arthur Bispo do Rosário faleceu. Foi sepultado sem sua nave e sem o seu manto sagrado, pois, estes sairiam da esfera mítica da apresentação das coisas do mundo a Deus, à esfera identitária da representação da Arte Brasileira, destituída de sacralização, mundo afora. Frederico Morais organizou, em outubro, quatro meses depois da morte de Bispo, a primeira grande exposição individual de sua obra, a esta altura com a liberação do cobiçado Manto de Apresentação, intitulada Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário.

“...eu digo, assim, sem empáfia nenhuma, que eu inventei o Bispo...” (Frederico Morais)

No dia 8 de setembro de 2013,o crítico de arte Frederico de Morais falou em entrevista na ArtRio do livro sobre vida e obra de Arthur Bispo do Rosário.Organizado pela psicanalista e pesquisadora Flavia Corpas, Arte da Loucura reúne textos inéditos.





Vídeo Arte Além da Loucura - Metrópolis 05/09/2013
Dirigido por Corpas, no qual Firmo e o jornalista José Castello relatam a experiência vivida durante os três dias em que estiveram com Bispo do Rosário. Dois eventos paralelos também fazem parte da mostra: uma palestra sobre a vida e a obra de Bispo e um debate sobre as relações entre fotojornalismo e arte e a produção de Walter Firmo, que contará com a participação do fotógrafo.




Documentário curta metragem.
Direção Flavia Corpas.
Audiovisual integrante da exposição "Walter Firmo: um olhar sobre Bispo do Rosário", Realização Livre Galeria, Patrocínio Caixa e Governo Federal.
A exposição reúne a obra de dois importantes nomes da arte brasileira. Composta por 28 fotografias, produzidas em 1985, a mostra revela o olhar de Walter Firmo sobre Bispo do Rosário, ao mesmo tempo em que oferece, ao nosso olhar, a produção artística de Bispo.
Ambientado na antiga Colônia Juliano Moreira, local onde Bispo do Rosário viveu e criou durante cerca de 25 anos ininterruptos, o ensaio completo será apresentado pela primeira vez ao público. A curadoria é assinada pela psicanalista e curadora de artes visuais Flavia Corpas, que trabalhou com o acervo do artista durante três anos.

Texto “A invenção de Bispo do Rosario”
Dissertação de Mestrado de Cecilia Gusmão Wellisch

Abrir um texto acerca da biografia de Arthur Bispo do Rosario poderia muito bem se dar por uma assemblage, expressão incorporada pelo crítico de arte Frederico de Morais à época da inserção de Bispo do Rosario na esfera das artes plásticas. Para tanto, seguiria o padrão ordenador do lead jornalístico, primeiramente, respondendo ao item “quem”: “Era solteiro, de naturalidade desconhecida, alfabetizado, sem parentes, com
antecedentes policiais (...)”.1
“Bispo nasceu em Sergipe, em 1911. Foi timoneiro e sinaleiro da Marinha,
lavador de carros e borracheiro da Light e boxeador”.2
“Preto, solteiro e de naturalidade desconhecida (...) Além de esquizofrênico
paranóico, Arthur Bispo do Rosario foi também boxeador, campeão pela Marinha de Guerra. Trabalhou na Light e para o advogado Humberto de Leone como ‘pau pra toda obra’. Bispo foi ainda segurança do senador Gilberto Marinho e de Gilberto Leone (também advogado) e porteiro do Hotel Suíço, na Glória”.3
“Bispo era negro, pobre, louco e pós-moderno”.4

Para, finalmente, com o item “O que”, ligar a “palavra” assemblage à direta associação da “coisa” a que representa, demonstrando o quanto seu procedimento de “junção de partes e de pedaços” contamina, ou obriga, o discurso daqueles que o querem investigar, desencadeando a tendência a uma sintaxe de ordenação de elementos consecutivos: “À primeira vista, esse universo é o caos. Painéis, vitrines, objetos envoltos em linha, recortes de papelão, panôs bordados, navios, miniaturas, esculturas em madeira, latas cheias de vidros, vidrinhos, potes (...)”.5
1 MORAIS, 1989.
2 STYCER, 1992. p. 2.
3 ABREU, 1993.
4 O ESTADO DE SÃO PAULO, 1990. p. 3.
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“(...) Fez sua obra com tapinhas [sic] de garrafas, talheres enferrujados, pedaços de lençóis encardidos, madeira, garrafas e quinquilharias (...)”.6 “(...) 359 peças foram exibidas na mostra retrospectiva apresentada no Museu de
Arte Moderna (MAM) em 93. Estas estão dividias [sic] em Estandartes (12), Roupas (5), Objetos (9), Objetos mumificados (172), Miss universo (61), Vitrines (7) e Arquivos (2). As outras peças nunca exibidas são Vitrines e Outros. (...)”.7
“(...) Para o público que vê os mantos, panôs, fardões, faixas bordadas, navios e objetos de madeira criados por ele, fica no ar a pergunta: trata-se de um louco artista ou de um artista louco?(...)”.8

“Os objetos recobertos por fios azuis que Bispo retirava do próprio uniforme, os painéis em que alinhava botões, sapatos, canecas, associando-os por cor, função ou forma, ou os mantos bordados e decorados com fitas coloridas, por sua contemporaneidade, o colocariam lado a lado com nomes como o de Marcel Duchamp, Hélio Oiticica, Tony Cragg ou os artistas pop e do dada”.9
“(...) objetos mumificados, bandeiras com textos e desenhos bordados (...), e mais assemblages, construções de madeira, e ‘objetos achados’(...)”.10
Usando este artifício, sairia da página branca e seguiria direto à problemática fundamental da construção e análise de uma biografia de Arthur Bispo do Rosário: o vazio. Vazio este, que ele preencheu bordando “PALAVRAS ESCRITA” ou signos, ou reunindo sucata, ou construindo objetos, como cópia do mundo visível, com papelão, madeira e linha. Vazio preenchido pela “apresentação” de seu universo pessoal e mítico ao mundo materialista, por meio dos media. Vazio a que me propus enfrentar. Como preencherei o vazio? Sem preenchê-lo. Inversamente, cavarei os brancos, pois, ao penetrar o centro de cada brecha, como um eixo, é que poderei fazer rodar o tempo capaz de transportar-me a urnas mais secretas.

5 BURROWES, 1999. p. 22.
6 REIS, 1994.
7 Ibidem.
8 REIS, 1984.
9 HOMERO, 1989.
10 PEDROSA, 1994.
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2. Urdimento

A partir do século XIX o testemunho escrito tomou alcance de documento fundamental, a legitimar o fato histórico e, segundo Jacques Le Goff, no século XX, o documento, bem como o texto, triunfa. Deste momento em diante, não haveria mais história sem documentos. A definição de documento prendia-se à ideia de texto, mas esta noção ampliou-se ao conceito de que a história está em todas as marcas deixadas pelo homem, seja em registros escritos ou sem eles, com tudo o que pertence ao homem, o que o expresse, havendo, inclusive, um retorno à valorização do relato. As histórias pessoais, biografias, seguiriam a mesma metodologia e serviram, de certo modo, à história social como fração da memória histórica, documento. Um documento atinge valor de monumento, uma vez utilizado por uma sociedade histórica como determinante da construção de sua própria imagem.
Escritura é um ato de poder e, como tal, desempenha o seu movimento característico de expansão, a difundir-se por espaço e tempo, perpetuando-se em forma de registro, “sem deslocar-se do eixo de suas ações”. Como bem exemplifica Michel de Certeau, em A escrita da História: (...) Combinando o poder de reter o passado (...) e o de superar indefinidamente a distância (...), a escrita faz a história. Por um lado ela acumula, estoca os “segredos” da parte de cá, não perde nada, conserva-os intactos. É arquivo. Por outro lado ela “declara”, avança “até o fim do mundo” para os destinatários e segundo os objetivos que lhe agradam – e isto “sem sair de um lugar”, sem que se desloque o centro de suas ações, sem que ele se altere nos seus progressos. Ela tem na mão a “espada” que prolonga o gesto mas não modifica o sujeito. Sob este ponto de vista repete e difunde seus protótipos.11

Os discursos são construções marcadas pelas estruturas ideológicas de grupos de pertencimento em uma sociedade. Testemunhos, invariavelmente, orientam a história na direção de certos interesses de dominação. O contexto 11 CERTEAU, 1982. p. 217. 29 discursivo, neste caso, está a serviço de uma visão ideológica do dominador, além do que, os documentos (no sentido de monumento) devem ser examinados pelo pesquisador de modo a serem cuidadosamente “desestruturados”, “desmontados” para revelarem os aspectos históricos.

O biógrafo, por seu turno, inserido em um momento histórico, em uma determinada sociedade, ou instituição, movido por interesses pessoais, ou de terceiros, fará a narração de uma vida. Esta inserção em um tempo e esta relação de interesses estarão, inevitavelmente, encerradas no projeto do biógrafo, em suas escolhas, análises, priorizações, julgamentos, e em omissões. O impulso inicial do biógrafo, como o do historiador, reside na busca de uma operação com os fatos e com a verdade. Não podemos, no entanto, perder a consciência de que, independentemente deste espírito, o resultado, em verdade, será sempre uma construção.

O problema da objetividade do historiador. A tomada de consciência da construção do fato histórico, da não-inocência do documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que se manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico. Mas esta constatação não deve desembocar num ceticismo de fundo a propósito da objetividade histórica e num abandono da noção de verdade em história; pelo contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das mistificações e das falsificações da história permitem um relativo otimismo a esse respeito.12

Deverá seguir, assim, o biógrafo comprometido estimulado por um método de “retidão biográfica”, de forma a garantir ao leitor um resultado puro e íntegro de procedimentos, para enfrentar as brechas de uma história passada por um filtro de memória, por uma seleção discursiva. Como seria, então, trabalhar sobre uma história de vida toda feita de buracos? Como é o caso do passado de Arthur Bispo do Rosário, feito de apagamentos, seja por falta de documentos escritos ou por falta de relatos. Jacques Le Goff, em História e Memória nos oferece a concepção de que o método histórico só pode ser inexato. A história é equívoca, pois, sempre partirá do ponto de vista de um narrador e, uma vez narrada, a história volve a passado, não é mais presencial, é o que se viveu e o que se viu passando pelo filtro da memória, pela seleção discursiva de um narrador. Fatos e ficção são os elementos negociados nos relatos das histórias de vidas e a conjunção destes 12 LE GOFF, 1994. p. 11. 30 elementos provoca um “efeito de verdade”.

Por esta via, a invenção atinge legibilidade, ao passo que a narrativa assume gêneros discursivos variados, contextualizando de novas maneiras as posições do sujeito frente à sua existência real. Descobrir é inventar, urdir.

O gesto barroco de Arthur Bispo trabalhou com os contrários, na medida em que apagou o passado, preenchendo com linguagem bordada uma história particular a reinventá-lo. Não se trata apenas do preenchimento da solidão ou da luta contra a morte, como se caracterizam normalmente as intenções narrativas autobiográficas, mas da “alteração” radical das referências essenciais de uma identidade.

Por meio da linguagem, Arthur Bispo inscreve-se como mito e este mito sugere e reflete a origem do mundo. Investido na qualidade de “Criador”, Bispo se vale da linguagem para realizar sua obra, pelo registro de uma história. Trata-se, não somente, de uma história de vida ordenada pelo conjunto linear de acontecimentos de uma existência individual, ou seja, sucessão de acontecimentos, mas, inversamente, as linhas de conexão são revolvidas, fazendo alusão ao mito da Torre de Babel, em que Deus confunde a língua dos homens por estarem construindo uma Torre na pretensão de alcançar o céu. Assim, o relato de sua história toma sentido pela ação do olhar do leitor interessado em estabelecer conexões à existência narrada. Neste sentido, Bispo realiza o desejo do artista de anular a arbitrariedade do signo linguístico, expresso pelo campo hermético, continente da poesia, tendo, ao final, seu trabalho imputado como arte.

3. A apresentação

Ocorreu no dia 22 de dezembro de 1938, à meia noite. Sete anjos em nuvens especiais, no formato de esteiras, foram buscá-lo na rua São Clemente, 301, Botafogo. Empunhando lança, em uma nuvem de espíritos malignos, foi ele assinalado com uma cruz de luz azul nas costas, para apresentar-se na Candelária, onde seria reconhecido como Jesus Cristo. Este evento está registrado em um dos estandartes de sua obra, como marca do eixo lógico condutor da história inscrita em sua “Nova” Escritura, feita de linha fundeada, ancorada em lençol. E as palavras entrançadas um dia se farão verdade.31

Apresentando-se, foi logo reconhecido como sujeito “fora do lugar”, imediatamente encaminhado para o manicômio da Praia Vermelha, no dia 24 de dezembro de 1938, nomeado pelos “homens de capa branca” como esquizofrênico-paranóico. Um mês depois levaram-no para a Colônia Juliano Moreira, onde viveu o mais largo tempo de sua vida com algumas saídas para trabalhar na casa da família Leone, de onde partiu no dia do encontro com os anjos para revelar-se o “deus recusado” por aqueles que não sabem ver.

Em 1980, “olhos de saber ver” seguiram em direção à arruinada Colônia Juliano Moreira, a fim de denunciar as condições do hospício e polarizar o momento de euforia nacional dos tempos de abertura política. O jornalista Samuel Wainer Filho, o Samuca, ao lado de seu cinegrafista, capturou pela primeira vez a imagem de Bispo e sua obra, exibida, em cadeia nacional, no dia 18 de maio de 1980, pelo Fantástico, programa de maior audiência, da maior emissora de televisão brasileira, Rede Globo de Televisão. Bispo talvez não tenha percebido que, 38 anos após o evento da aparição dos anjos, naquela noite em Botafogo, outras nuvens estariam, então, trazendo-lhe novos emissários, prontos a levarem-no a uma segunda “apresentação”, menos mítica, do seu universo para o mundano.

As denúncias do jornalista Samuel Wainer Filho repercutiram como um escândalo. A Colônia Juliano Moreira foi submetida a uma devassa cujo resultado revolucionou o hospício de Jacarepaguá, conferindo liberdade aos doentes e melhorias nas condições de infra-estrutura do manicômio. Neste mesmo ano de 1980, o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, como funcionário do Ministério da Saúde, atravessou a rotina da Colônia Juliano Moreira, para documentá-la por meio de fotos e filmes. Avisado sobre a existência de Arthur Bispo do Rosário, após algumas tentativas frustradas, conseguiu entrevistá-lo, criando o filme O prisioneiro da passagem – Arthur Bispo do Rosário, em 16 mm, editado em 1982.

Denizart exibiu o filme protagonizado por Arthur Bispo em congressos, debates, encontros; e em 1982, o exibiu pela rede BBC de Londres. Daí para frente estava dada a partida; Bispo foi apresentado ao mundo antes de apresentar-se a Deus e os olhos do mundo voltaram-se em sua direção.

4. Pelos olhos do mundo dos vivos

Partiu de Frederico Morais, crítico de artes plásticas, a motivação de organizar uma biografia capaz de erigir o passado de Arthur Bispo do Rosário. O crítico foi despertado para a obra de Bispo, inicialmente, pelo programa de TV Fantástico, em 1980, e depois pelo psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, produtor do já citado documentário O prisioneiro da passagem.

Em 1982, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) organizou a exposição À margem da vida, com trabalhos de presidiários, idosos e doentes mentais. Cada um dos segmentos da Mostra foi organizado por um monitor. Maria Amélia Mattei, artista plástica e diretora do que mais tarde viria a ser o Museu Nise da Silveira, foi a responsável pela organização das obras dos internos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Maria Amélia contou com o apoio de Hugo Denizart na hora do diálogo com Bispo para tentar a cessão de alguns de seus trabalhos à exposição. Bispo resistiu para liberar seus objetos, entretanto, às vésperas da Mostra deu o seu consentimento.

A coletiva demonstrava uma tendência da época em discutir o conceito de Arte Bruta, criado por Jean Dubuffet, na Europa, em 1945. A mostra do acervo de Bispo do Rosário resultou no sucesso da exposição. Daí em diante iniciaram-se os debates entre grupos da elite estética, sobre a atribuição de valor à obra de um esquizofrênico como Arte.

Frederico Morais, então, coordenador de artes plásticas do MAM, comovido pelo trabalho de Arthur Bispo, quis conhecê-lo em sua cela, na Colônia Juliano Moreira. Hugo Denizart promoveu o encontro cujo desdobramento transformou o homem de passado apagado em artista legitimado, com a obra tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional.

Arthur Bispo do Rosário, por sua vez, nunca relacionou seu trabalho com a obra de arte. Trabalhava duro para relatar as coisas mundo e, assim, inventou uma técnica personalíssima. Bispo possuía o essencial, de que poucos artistas dispõem, ele tinha o que dizer, e a função mítica de o fazer, esta, foi a motivação de todo o seu esforço de invenção. Criou um duplo do mundo para apresentar a Deus.
Conforme o relato, daquela que mais tarde foi a biógrafa oficial de Bispo, a jornalista Luciana Hidalgo, quando Bispo deixou alguns de seus objetos saírem 33 dos quartos do pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira – para a exposição À margem da vida, em 1982, no MAM – “conversou com as peças, pediu que tomassem cuidado para não se deturparem mundo afora”13. E quando foi convidado a visitar o MAM para ver seu trabalho exposto, recusou dizendo: “Meus olhos não estão preparados para ver aquilo”.

Em 1989 Arthur Bispo do Rosário faleceu. Foi sepultado sem sua nave e sem o seu manto sagrado, pois, estes sairiam da esfera mítica da apresentação das coisas do mundo a Deus, à esfera identitária da representação da Arte Brasileira, destituída de sacralização, mundo afora. Frederico Morais organizou, em outubro, quatro meses depois da morte de Bispo, a primeira grande exposição individual de sua obra, a esta altura com a liberação do cobiçado Manto de Apresentação, intitulada Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário.

4.1 “...eu digo, assim, sem empáfia nenhuma, que eu inventei o Bispo...” (Frederico Morais)

Retomando os textos do lançamento oficial de Arthur Bispo como artista, na exposição Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário, o penúltimo parágrafo do primeiro texto de Frederico Morais esclarece um novo ponto relevante por trás das intenções da Mostra : Preocupada com o destino que seria dado ao acervo de Arthur Bispo, a atual diretora da Colônia, drª Izabel do Carmo Torres da Silva, promoveu algumas reuniões, das quais participaram a coordenadora de Reabilitação e Integração Social da Colônia, Denise de Almeida Correia, Pedro Gabriel Godinho Delgado, coordenador de ensino e pesquisa, Conceição Robaina e Maria Amélia Mattei, diretora do Museu Nise da Silveira, da Colônia, além de Frederico Morais, Luís Carlos Wanderlei Soares e Márcio Rollo. A morte de Bispo pegou todos de surpresa. Decidiu-se então, em reunião realizada no dia 19 de julho, criar uma associação de Amigos dos Artistas da Colônia Juliano Moreira, que cuidaria prioritariamente da obra de Bispo (...) Os objetivos da Associação, definidos nessa reunião, foram os seguintes: levantamento e catalogação das obras, documentação fotográfica, restauração das peças em estado precário de conservação, divulgações, e, finalmente, 13 HIDALGO, 1996. p. 154.34 encontrar um novo local com condições adequadas para guarda do acervo.14

Com a morte de Bispo do Rosário, iniciaram-se os debates políticos envolvendo a apropriação de uma obra admitida como genial, capaz de atrair a atenção da media, abrindo espaço editorial, oferecendo visibilidade a seus tutores, bem como instaurando os debates sobre a questão de ordem financeira ligada à preservação da obra. Para além dos interesses específicos relacionados à obra, estão também envolvidos neste ponto, fatores de prestígio pessoal e institucional. Marília Rothier Cardoso elucida um sentimento comum à atividade do biógrafo, semelhante a dos guardiões de acervos. Ela diz o seguinte: O biógrafo (...) coloca-se, voluntária ou involuntariamente, na posição de herdeiro do biografado; deseja ressuscitá-lo para fundar o poder de seu próprio nome ou confirmar seus pontos de vista pessoais, tendo, como base, a vida e a obra de seu objeto.15

Procurei Frederico Morais ao fim do mês de setembro de 2005, inicialmente, manifestando-me, simplesmente, como aluna de pós-graduação da PUC-Rio, a fim de entrevistá-lo sobre Arthur Bispo do Rosário, tema de minha dissertação de mestrado. Um senhor muito educado atendia-me sempre pedindo que eu ligasse mais tarde, “lá pelas oito da noite”, contudo, à noite, atendia-me o sinal do fax. Entendi o sinal do fax como uma senha. Preparei um texto, apresentando a ideia de meu projeto, e pedi à minha orientadora, Pina Coco, um segundo texto de apresentação com o timbre da PUC, dando à pesquisa um caráter oficial. No texto, tratei de dizer: (...) Proponho, em minha dissertação, contar a história da construção do discurso de legitimação da obra de Arthur Bispo do Rosário, fundado pelo crítico de artes Frederico Morais – eis o motivo de minha insistência em encontrá-lo – por meio de textos da mídia impressa e de textos de sua autoria, encontrados em catálogos das principais exposições do trabalho de Bispo.
Defendo a ideia de que o senhor engendrou a história “da obra” e do próprio Arthur Bispo “como artista”, com o objetivo de inseri-lo na esfera das artes plásticas.16 14 MARIA, 1989. Grifo meu. 15 Cf. OLINTO, 2002. p. 116. 16 Carta de Cecilia Gusmão Wellisch, enviada por fax a Frederico Morais, em out. 2005. 35

No dia 19 de outubro, Frederico Morais respondeu-me com um telefonema. No dia 24 de outubro o portão azul da casa de Frederico Morais, em Santa Teresa, abria-se para mim e minhas pastas se estatelaram no chão. A frase pontual de apresentação foi de Frederico: “você está cinquenta minutos atrasada”, não concordei, porém, conferindo na agenda, certifiquei-me de que ele estava com a razão. Comecei mal, mas a entrevista decorrente fluiu como uma dedicatória. A certo ponto da entrevista, ao falar do momento da morte de Bispo, quando se fundou a Associação de Amigos da Colônia Juliano Moreira, e se iniciou o projeto de divulgação e guarda do acervo de Arthur Bispo do Rosário, Frederico revela, conscientemente, o seu verdadeiro papel, como leitor da vida e obra de Bispo e como gerente do lançamento do nome, Arthur Bispo do Rosário, e de seu atributo artístico. Frederico diz: (...) a segunda parte do projeto, era inserir o Bispo no contexto da arte brasileira. Quer dizer, começar uma discussão sobre o Bispo artista, nesse sentido que eu digo, assim, sem empáfia nenhuma, que eu inventei o Bispo, no sentido de que o Bispo não existia como artista, ele existia como doente mental, que foi o enfoque, por exemplo, do Hugo Denizart, que ele era fotógrafo e psicanalista, né? Então eu organizei a exposição dele no Museu, na Escola [Parque Lage]. Foi uma exposição de impacto extraordinário, foi muito bem montada, já nessa primeira mostra, com o Gerardo Vilasecca, que trabalhava comigo na Escola.17

A afirmação, “eu inventei o Bispo, no sentido de que o Bispo não existia como artista (...)”, era o que eu pretendia encontrar, implicitamente, no discurso de Frederico Morais. Era inclusive o título de minha dissertação, sugerido por Pina Coco: A invenção de Bispo do Rosário, para refletir as questões que eu procurava estabelecer, relacionadas com o caráter irremediável da escrita como construção, como revelação de um discurso organizado e articulado, de um autor em relação a um leitor. Morais, embora não conhecesse o título da dissertação, leu o meu fax, entendia meus objetivos, assim sendo, decidiu entregar-me o presente voluntariamente, como se me dissesse: “sabemos, ambos, ‘o que é o autor’. Divirta-se”. 17 MORAIS, 2005. 36

4.2. Fundação

No Manual de redação e estilo, do jornal O Estado de São Paulo, está a definição do verbete “Repercussão”, esclarecida como sendo a maior ou menor
importância de um fato. Proporcionalmente ao grau de importância deste fato, são dedicados o número de linhas e as retrancas para o seu desdobramento. O catálogo da exposição Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário, no Parque Lage, representava um tabloide de jornal, impresso na Tribuna da Imprensa, para o qual Frederico Morais, editor do catálogo, escreveu os textos fundadores ao plano de reconhecimento de Arthur Bispo do Rosário como “artista verdadeiro”. O formato de tabloide para o catálogo, prefigurava a repercussão do discurso fundador de Morais – por meio do mesmo veículo que o tabloide representava –, pronunciado como matéria-prima de vozes decorrentes. Um exemplo de fala padrão apresentada pela primeira vez no texto de Frederico Morais e adotada posteriormente pela mídia impressa, a exemplo da abertura deste segundo tomo, é a tendência em frisar o vazio da biografia de Bispo, resumindo os dados de sua identidade por sequências de elementos de mesma função sintática, separados ou não por vírgulas. No texto de Morais aparece assim: Negro. Solteiro. Sem parentes. Marinheiro e boxeador. Antecedentes policiais. Esquizofrênico, paranóide. Meio século internado na Colônia Juliano Moreira. Artista genial.18 Na mídia, outras vozes seguiram o mesmo modelo: (...) artista, esquizofrênico, negro, primitivo e genial:
Arthur Bispo do Rosário [sic] (...)19 Preto, pobre, esquizofrênico internado do manicômio da Colônia Juliano Moreira durante 50 anos (...)20 18 MORAIS, 1989. 19 VENTURA, 1996. 20 KLEIN, 1999. 37

Ex-marinheiro, ex-pugilista, ex-funcionário da Light, Arthur Bispo do Rosário, nascido em Japaratuba, Sergipe, no ano de 1909 (...)21 No rastro da lógica de reconstrução do mundo proposta por Arthur Bispo, Frederico Morais leu os textos costurados de Bispo como “uma espécie de suma do conhecimento, uma enciclopédia ilustrada, uma História Universal”. Além disso, viu em suas narrativas a estrutura épica, como na Odisséia, de Homero.

Estas associações devem ter causado grande impacto e foram absorvidas em outros artigos e até no texto do curador da mostra de Bispo em Veneza, anos mais tarde, em 1995: (...) Quando seu mundo desabava, quando as últimas, pontas de sentido se esvaneciam, Bispo agiu como um enciclopedista, disposto a reter, para salvar, ao menos o nome das coisas.22 (...) O registro do mundo através de longas listas de nomes que, ou se referem à vida privada de Bispo, ou ao mundo público, constituiu [sic] claramente um desejo de mapear o mundo traduzindo-o num texto: um outro enciclopedismo.(...) É o mito do gênio louco, tomado por um bibliotecário obsessivo, que cataloga seu mundo privado.23 (...) O único senão foi o título dado à seção: Arte Incomum. Incomum para quem? Não para Bispo, que tecia com notável coerência a sua representação particular do universo (...) a ponto de transformá-lo numa Odisséia de objetos de dolorida beleza. (...) Para Bispo, o estranho, o estrangeiro somos nós. É nesse sentido que se encaminham, aparentemente, as discussões no MAC, cuja política cultural tem sido mantida na ponta das indagações atuais.24 O marujo cria um ponto de referência cosendo a farda. Na análise mítica, Ulisses e Penélope são a mesma pessoa, o direito e o avesso.2521 CASTELO, 1999. p. 289. 22 Ibidem. p. 301. 23 PEDROSA, 1994. 24 O ESTADO DE SÃO PAULO. 1990. 25 AGUILAR, 1995.38
Exemplos como estes estão dispersos na teia de textos que se seguiram às análises de Frederico Morais sobre a estética produzida por Bispo, como se Frederico em posse da roca houvesse soltado a linha de análise para outras vozes espalharem seus pensamentos no itinerário do tempo. Aproximações da obra de Bispo com alguns trabalhos de Duchamp “o artista fundador de quase tudo o que se faz hoje”, como a Roda de Bicicleta; as Urnas, feminina e masculina; o Porta- Garrafas; associações com a Pop-Art; com as assemblages de Arman, César, Martial Raysse e Daniel Spoerri, do Novo Realismo; com as tendências arqueológicas; com a nova escultura inglesa, como a de Tony Cragg; com o pósmodernismo; com a corrente arqueológica francesa, lembrando nomes como os de Boltanski, Gasirovski, Le Gac, Bertrand ou Bertholin; e até com Hélio Oiticica; partiram desse mesmo texto fundador, misturaram-se a outros textos ou serviram como orientação a estudos ulteriores.

Interroguei Frederico Morais sobre as suas intenções ao relacionar Bispo do Rosário com artistas consagrados e vertentes, por exemplo, da arte europeia e norte-americana. Ele respondeu: (...) Então, o que se percebe é que não era só um registro, não era um registro tumultuado, mas era um registro lógico, coerente, com um sentido, facilitando inclusive uma leitura, uma interpretação. Ele tinha um sentido estético. Ele nunca usou a palavra arte, mas evidentemente que ele tinha uma visão estética das coisas, um sentido de organização, então, esses são mais ou menos os critérios para os quais eu queria chamar atenção.
E ao mostrar que esse mundo do Bispo não era “tumulto”, não era só delírio, mas era um mundo coerente, como o de qualquer artista, principalmente os chamados artistas conceituais, quer dizer que ele tinha o domínio, tinha o controle conceitual. Na verdade, o delírio do Bispo era o conceito.
Então, eu procuro aproximar essa criação do Bispo do que estava ocorrendo com a arte, já não mais moderna, mas a arte pós-moderna (...)26

Frederico Morais liderou as pesquisas a respeito da biografia de Arthur Bispo do Rosário, até o ano de 1996. Somente 20 linhas retiradas da ficha de doente da Colônia Juliano Moreira foi tudo o que chegou a Frederico sobre Bispo até o início de sua pesquisa27, e foi mais uma das frases desgastada nos textos da 26 MORAIS, 2005. 27 Anexo 6a, p.XVII. 39 imprensa.

Morais usou principalmente a mídia impressa para detalhar sua análise crítica da obra de Bispo, e, de alguma forma, deixar documentado o registro possível da vida e obra do artista, por um projeto assumido de dar-lhe visibilidade. Note-se a seguir a fala do crítico para uma matéria da Tribuna da Imprensa, em 1989: Os primeiros trabalhos de Bispo, ainda na Praia Vermelha, mais se aproximam da arte popular, o que nos poderia remeter a uma possível origem rural. Depois de um período de sete anos de voluntário isolamento em seu cubículo, é uma outra visão que lhe determina a reconstrução do mundo e de tudo o que nele havia. É quando começa a desfiar seus uniformes para tecer os longos textos em que – como uma numa [sic] enciclopédia – descreve bandeiras, desenha mapas, e cita países, provavelmente os que visitou em seus tempos de Marinha, explica Morais (...)28

Todos os textos, inclusive os de Frederico Morais, até esta época, ao descreverem a biografia de Arthur Bispo do Rosário, sublinhavam, com certa ênfase, a circunstância de o artista ter vivido 50 anos na Colônia Juliano Moreira.
A afirmação assumiu maneirismos variados: “(...) artista sergipano que viveu 50
anos como interno da Colônia psiquiátrica (...)”29, “(...) O sergipano preto e pobre, que chegou ao Rio e ficou por mais de 50 anos internado (...)”30, ou, “(...) negro pobre, que passou 50 anos de sua vida num sanatório público, fazendo trabalhos com os materiais que conseguia (...)”31.

É de grande relevância o levantamento feito por Frederico Morais dos dados a respeito dos períodos em que Bispo esteve fora da Colônia Juliano Moreira, seja por fuga, seja por regalias obtidas na troca de favores com funcionários, pois nestas fases utilizou em seu trabalho alguns materiais cuja qualidade e aspecto diferem daqueles arrecadados das sobras da Colônia, como é o caso das linhas coloridas vistas no bordado do Manto de Apresentação, como se soube depois, doadas pela família Leone (antigos patrões de Bispo, donos da casa de Botafogo onde ele viveu e trabalhou como caseiro durante muito tempo).
Na mesma matéria do Jornal de Brasília, Frederico Morais faz referências consideráveis sobre pistas biográficas iniciais, localizadas por meio de seus 28 HOMERO, 1989. P. 4. 29 REIS, 1994. 30 REIS, 1984. 31 PEDROSA, 1994. 40 estudos do manto, das fardas e dos panos, até então não mencionados publicamente: Quando começamos a abordar sua obra [de Bispo do Rosário] na Colônia Juliano Moreira, não existia nenhum estudo sobre ele, apenas um pequeno texto com uns poucos dados biográficos. Aos poucos, através da leitura da obra, começamos a reconstituir a história de sua vida, localizamos pessoas com quem ele trabalhou, e atingimos uma elucidação razoável. Deu para constatar que ele sempre foi uma personalidade bastante rica de aspectos muito variados e muito habilidoso [sic]. (...)
Ele, inclusive, chegou a ter alta, também chegou a fugir ou seja, passou períodos fora da colônia quando trabalhou de porteiro e também numa clínica.32

Em 1995, outra declaração importante de Frederico sobre os resultados de seus estudos sobre a vida de Bispo, a partir da leitura dos bordados, foi publicada no jornal O Estado de São Paulo: Para reconstruir o épico de toda sua vida, dentro e fora da colônia, o antes e o depois da loucura, precisei agir como um detetive disposto a elucidar um crime, ou como um médico legista dissecando um cadáver.
(...) Hoje sabemos que Bispo do Rosário nasceu em 16 de março de 1911, em Japaratuba, interior de Sergipe (...)
(...) O exame de seu prontuário médico indica a existência de dois vazios – 1944 a 1948 e 1954 a 1964. Ainda não pude confirmar se nos dois lapsos de tempo aludidos Bispo do Rosário teve alta médica, se foi transferido para outro hospital ou mesmo se fugiu. É certo, porém, que nestas ausências trabalhou em um escritório de advocacia, como porteiro do hotel, como guarda-costas e cabo-eleitoral de um senador da República. No início de 60, trabalhou como faz-tudo numa clínica pediátrica, onde comprovadamente realizou parte de sua obra. Uma nova crise levou-o de volta à colônia, em 8 de fevereiro de 1964, de onde não mais sairia.33

Quando Hugo Denizart conviveu com Bispo do Rosário, era também professor de jornalismo em uma universidade particular. Certamente, fascinado pela descoberta, levou seus alunos para conhecerem Bispo e pediu que fizessem 32 Ibidem. 33 MORAIS, 1995.41 um trabalho sobre o tema. Uma das alunas era Luciana Hidalgo, a jovem de 28 anos que lançou em 1996 a primeira e única “biografia” de Arthur Bispo no mercado editorial. Conversei com Luciana e o primeiro assunto abordado foi a sua motivação para escrever sobre a vida de Bispo: Eu era jornalista e eu vi essa possibilidade de escrever uma biografia. E eu via que as biografias começaram a aparecer, na época, de jornalistas. Eram [biografias] de grandes figuras, de medalhões da história do Brasil. (...) Eu estudei na Faculdade da Cidade, me formei lá em jornalismo em 1983, quer dizer, o Bispo nem tinha ainda aparecido em 89 com a exposição, em 85 na mídia. Eu fui aluna do Hugo Denizart, que foi quem realmente levou o Bispo pro mundo, quer dizer, levou o mundo ao Bispo, né? Então, eu fui aluna do Hugo Denizart, que passou o filme dele sobre o Bispo na aula e a gente foi obrigado a entrevistá-lo e fazer uma matéria. (...)
Muito tempo depois, eu fui trabalhar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e teve a exposição do Bispo lá, a primeira, né?(...) No Parque Lage eu vi a obra e fiquei muito impressionada, então, aquilo ia ficando ali arquivado em mim.
Quando eu vi a possibilidade jornalística de fazer uma biografia, eu tinha 28 anos, não era muito velha pra fazer biografia ainda, né? Aí eu vi uma matéria no Caderno B, de um colega (...), dizendo que a obra estava totalmente abandonada, e falando dele de novo. Aí eu tive a ideia, “puxa, seria uma ousadia”, né? Escrever sobre uma figura que não é um medalhão. Claro que a obra já era conhecida, mas em 94, quando eu decidi começar a pesquisa, não tinha nada escrito.

Algumas pessoas me ajudaram muito, que tinham feito pesquisa pra aquele filme do Miguel Przewodowski (...) E o Miguel Przewodowski e a Helena Martinho da Rocha, eles, nossa! Eles me ajudaram, assim, muito. Principalmente o Miguel, ele, o Miguel, tinha feito a primeira pesquisa, então, a suspeita de que ele [Bispo] tinha vindo de Japaratuba, ele [Miguel] já tinha tido; nunca tinha ido lá pra ver. Tinha feito um contato, não tinha dado em muita coisa, mas tinha várias coisas, assim, que pro início me deu um gás, porque partir do nada, nada, é muito difícil, né? Então, cada vez que eu ia me aprofundando eu ia ficando fascinada pela obra.34

Perguntei à Luciana se havia procurado Frederico Morais no período de sua pesquisa e ela respondeu: Procurei. No início ele foi muito reticente. (...) eu acho que ele chegou a me dizer por telefone que estava afastado desse tema. Ele não era mais curador da obra. Na época, a Denise [Correa] já tinha sido afastada da direção, tanto que eu comecei a ir lá e estava na fase de transição. E todo mundo ajudou muito, tanto a obra, como a divulgação. Cada um teve um papel importante, mas ele tinha alguma mágoa (...) aí eu não posso dizer com muita certeza, mas me pareceu um pouco isso.
(...) Mas eu trabalhava no JB com o filho do Frederico, e aí eu insisti com ele, com o filho, com o Alexandre. E no final da minha pesquisa, quando eu estava já fechando a pesquisa em si (...) ele me deu a entrevista e me confirmou várias coisas, porque o Frederico tem um papel importante. Na verdade, foi o Hugo que levou o Frederico, que já foi uma maravilha, ter escolhido o Frederico. E depois o Frederico foi lá e fez as primeiras associações importantes com a arte contemporânea, né? Fez a primeira exposição.35

Luciana Hidalgo procurou marcar as figuras de Hugo Denizart, Miguel Przewodowski e Helena Martinho da Rocha – os dois últimos são os realizadores do filme O Bispo do Rosário, exibido pela Rede Manchete, em 1993 – como reais apoiadores de seu projeto. Por trás do levantamento de informações e pesquisa de campo realizadas por Miguel Przewodowski e Helena Martinho da Rocha, para o vídeo O Bispo do Rosário, estão estudos importantes de Frederico Morais a partir dos quais a história de Arthur Bispo foi se revelando. Em entrevista, Frederico menciona duas vezes o nome e o trabalho de Miguel Przewodowski: Na primeira ocasião responde à minha pergunta: O Miguel procurou pelo senhor? É. Houve essa aproximação. Sabe, porque o impacto foi tão grande que as pessoas começaram a fazer as suas leituras e todo mundo queria, de certa maneira, participar desse processo e dar sua versão através do cinema, através do teatro, quer dizer, o Miguel foi o primeiro a tentar essa abordagem, porque ele se comoveu com a história da Rosângela, que é uma história bonita, trágica. Depois, houve uma espécie de gap de tempo, depois do filme do Miguel, que é um média metragem, não é um curta, aí depois é que mais tarde à medida que o Bispo começa a ser chamado pra participar de outras exposições: foi pro exterior, foi pra Suécia, foi pra Bienal de Veneza.36

Na segunda vez: 35 Ibidem. 36 MORAIS, 2005. 43 Ele registrava todas as coisas que ele vivenciou, que ele sabia existir, que ele tinha conhecimento que existia. (...) uma das coisas que a gente teve que fazer foi a biografia do Bispo. Construir ele. Tudo que existia era um documento roto, estragado, rasgado, com cerca de 20 palavras que era tudo o que se sabia da vida de Bispo, então, a gente teve que construir a biografia do Bispo. E a gente construiu a partir da obra dele. Eu ainda conversei com alguns conterrâneos na colônia: policiais, internos, outros que conviveram com Bispo na época, pessoas como a Mattei, a estagiária, a Rosângela; levantei dados de outras atividades extra colônia. E comecei a ler a obra dele, o texto que ele escreveu. E aí fui identificando a biografia: o nome do pai, etc e tal. Quer dizer, 95% da biografia do Bispo eu criei, você tá entendendo? E passei dicas pra outras pessoas, o próprio Miguel Przwodowski. A questão da Light, por exemplo, eu sabia que ele tinha trabalhado na Light, mas eu ainda não tinha ido à Light, aos arquivos, então ele lá [Miguel Przewodowski] levanta realmente, através da Light descobre o nome lá em Aracajú, mas que já estava nos panos dele, o nome do pai, que aparece; a atividade dele como boxeador, os nomes dos boxeadores que ele registra.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Alda de Moura Macedo Figueiredo, Manto da Apresentação: Arthur Bispo do Rosário em diálogo com Deus.

José Almir Valente Costa Filho; ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: uma poética em processo.
Solange de Oliveira, Uniformes e re-bordados de Bispo do Rosário: mundo desconstruído e ressignificado.
Livia Eliana de Britto Rios; A função do manto do reconhecimento na obra como sinthome em Arthur Bispo do Rosário.

Viviane Borges Trindade, Do esquecimento ao tombamento : a invenção de Arthur Bispo do Rosário
Marilane Abreu Santos, COSTURANDO MEMÓRIAS Arthur Bispo do Rosário e a recriação do universo.

Cecilia Gusmão Wellisch, A invenção de Bispo do Rosário